sábado, 18 de janeiro de 2014

O dia em que me tornei camponês


Para João Aguardela


Foi numa quarta-feira que me decidi tornar camponês. Os carros estavam empoleirados nas árvores e o homem da rádio não parava de dar notícias de crimes contra a humanidade dos antípodas do nosso mundo, onde não havia tráfico, mas havia crimes.
Sim, foi numa quarta-feira. Cheguei a casa e doía-me a sola do pé de tanto pisar a embraiagem no pára-arranca-pára dos nossos dias. A gravata revoltara-se contra o pescoço num chupão vermelho e eu dei por mim a hidratar a pele com um daqueles cremes com que se besuntam os rabos dos bebés. 
Nessa quarta-feira espreitei pela janela na esperança de ver o céu, mas embora estivesse azul, ora a clarabóia da marquise ora o prédio inamovível que jazia à minha frente, não me deixavam saber. Apenas vislumbrei uma vizinha que debruçava o decote húmido sobre a planta que regava. E foi então que pensei, quem me dera ser camponês.
Era quarta-feira. Desci à loja e comprei uma enxada topo de gama, que prontamente assentei no ombro, como os camponeses fazem. Depois troquei o meu carro por uma carripana constipada, que tossia sem parar mal se ligava o motor, e tremia tanto que eu tinha de segurar o volante com as duas mãos como quem doma um cavalo bravo.
O campo começava logo ali, onde terminava a cidade, e prolongava-se até ao começo da próxima. Um homem de fartas suíças disse-me que para chegar ao campo tinha que virar na segunda a esquerda, depois da bomba gasolina.
Quando cheguei ao campo instalei-me na casa de campo. Pousei a enxada no alpendre, olhei para o céu exageradamente azul e pensei, como é boa a vida no campo.
Naquele dia decidi, amanhã cavo. Pousei discretamente a enxada na casa das ferramentas e fui até ao café da aldeia, onde os camponeses têm conversas campestres de final de tarde. Na carripana ia a ouvir as recolhas de música tradicional portuguesa de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. Como o carro tossia cada vez mais alto, eu aumentava o volume até ensurdecer os pássaros.
No café da aldeia havia música todas as quartas-feiras. Então eu tirei da carripana a viola braguesa, disposto a impressionar as hostes com um inesperado dedilhado urbano. Mas por lá estava tudo em silêncio.
Sentei-me ao balcão e pedi um bagaço, enquanto observava a mais bela camponesa, branca e roliça, com braços anchos e peitos folgados, como as camponesas se querem. O que bebes?, perguntei-lhe numa timidez provinciana. Um Bloody Mary, disse-me, pouco sumo e muito gelo, para não atrair mosquitos.
 Ao segundo gole vermelho, perguntou-me, remexendo a palhinha, O que fazes hoje à noite?
 Olho a lua, respondi.
E o que é que a lua tem de especial? A lua é sempre a mesma, está ali há séculos, ora cresce ora diminui, ora é tapada pelas nuvens ora fica à mostra. A lua é sempre a mesma coisa, não há nada para ver.
Senti-me incomodado com a minha excentricidade urbana. Nunca me tinha ocorrido que a lua se pudesse tornar em algo tão desprovido de sol.
Porque não vens antes ao Ex-Libris?
O Ex-Libris era a discoteca do campo. E eu substituí a Lua pelo Ex-Libris. Senti-me envergonhado por levar a minha carripana ferrugenta, enquanto os outros usavam Mercedes, Rovers, Jeeps.
A camponesa chegou de Smart. Usava óculos escuros mosca, calças largas, uma t-shirt apertada e, para ser franco, já não me parecia tão roliça quanto isso. Levou-me pela mão numa floresta de beats e luzes, na qual eu certamente me perderia se não acompanhado. Depois ela entrou no cubículo do DJ e rodou os pratos do gira-discos como quem está na safra. O público, devidamente drogado, mostrava o seu contentamento, com longos uivos e braços bailantes no ar. Passava um tecno-subversivo, com mais beats do que a pulsação de um hiperactivo.
Ao princípio julguei aquele som insuportável, mas quando a camponesa me forneceu uma ampola artesanal para a boa disposição, entrei no ritmo, e apercebi-me da beleza das semifusas monocromáticas.
Acabámos a noite em casa dela. Recostados num sofá de poliéster. Eu com a minha viola braguesa e ela com uma caixa de ritmos da Korg, capaz de transformar o canto dos pássaros no som de uma locomotiva nervosa. Vamos gravar uma demo, propôs-me. Eu hesitei. Mas quando voltei para a carripana, as recolhas do Giacometti sobre a batida do carro constipado pareceram-me ainda mais magníficas.
Peguei na enxada e fiz-me à cidade, sorrindo sem dar conta, enquanto guiava. Cantarolava as músicas que ouvia e ia tomando notas com a mente. Lá em cima, a lua da cidade estava encoberta por uma mancha de smog que lhe dava uma tonalidade púrpura, que nem a urze da planície. 



quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Nódoas negras (o que faz um sampler dos Oasis na música dos Blur?)





A vida é feita de pequenos dilemas, mas aquele era particularmente delicado. Já estava tudo combinado com o Nico, os bilhetes reservados, o carro cheio de gasolina...
A Joana é a mulher com quem eu escolhi viver... e os Blur... Os Blur são, no mínimo, a melhor banda da atualidade. Melhores que... Nem vale a pena continuar. Essa coisa de comparar os Blur com os Oasis é um truque comercial desesperado, tendo em vista a promoção dos segundos. Não há aqui Beatles e Rolling Stones.. É como confundir o artista plástico com o calceteiro. Os Blur são grandes. E os Oasis são uns tipos que andam para aí. Não há rivais à altura. Inclusive, o começo dos Blur é superior ao dos Beatles. Exagero? Então comparem Leisure com Please, Please, Please me.
Quando soube que os Blur iam atuar a Madrid, tratei de garantir que eu era um dos 3560 espectadores presentes na sala. Desse por onde desse. Custasse o que custasse. Em escudos, euros ou pesetas. Telefonei ao Nico, o cúmplice do costume. Alinhou na viagem. Eu predispus-me a pagar a gasolina. Ele as portagens. Marcámos a hora... Só depois avisei a Joana.
A vida é feita de pequenos dilemas, mas aquele era particularmente delicado.
Deixei-a partir para o trabalho e fiquei ali sentado naquela indecisão. Com 365 dias no ano, porque raio é que ela tinha que nascer exactamente no mesmo dia do concerto dos Blur? É mau feitio. À noite haveria um jantar com os pais dela. E com os meus pais. E a avó. E a tia que veio dos Açores.
Os dois pratos na balança. O jantar de família e os Blur. Os Blur e o jantar de família. Em que ficamos?

- Estás pronto, Nico?

*

Já sabia que os espanhóis eram barulhentos. Mas nunca os imaginei tão malcomportados. Quando o espetáculo começa, continua a ouvir-se aquele burburinho entre o “vale vale” e o “hombre”. Ostia, tive que ligar o meu silenciómetro, abstrair-me dos comentários corrosivos e concentrar-me de corpo e alma nas canções. Brilhante Boys & Girls. Brilhante Country House. Brilhante There’s no other way – não há amor como o primeiro. Subitamente, de forma inexplicável, Damon Albarn, começou a entoar Birthday, um tema esquecido do primeiro álbum. Porque o fez? Ainda hoje não sei. Na altura soou-me como um sinal dos céus.
Cantou de forma soberba e sussurrante as palavras de azedo lilás.

It’s my birthday,
no one’s here today
I don’t like these days
they make me feel so small

Aquela música descobriu o canal que liga os meus ouvidos a compartimentos adormecidos do coração. E desentupiu-o. Senti o remorso, que se converteu em saudade, e culminou numa vontade irresistível de regressar. Nem quis ouvir Song 2, nem outros êxitos recentes. O Nico ficou para ali a saltar eufórico entre “vales” e “de putamadres” e enquanto eu deixava a sala, sem me preocupar com o seu regresso à pátria. Nunca me imaginei capaz de abandonar um concerto dos Blur a meio, mas foi o que fiz. Tudo por uma imensa vontade de beijar a Joana, de mergulhar no silêncio dos seus lábios, do seu meio-sorriso e ar zangado.

Joana banana vai para a cama de pijama.

Parti sem olhar para trás. Meti-me no carro e viajei para Lisboa. Prego a fundo. A ouvir repetidamente o último álbum dos Blur. Madrid é tão longe. Por auto-estradas que nos aproximem e fronteiras que se desfaçam haverá sempre 600 quilómetros a separar-nos. Corro ao sabor do tempo, inspirado em memórias de olhares.
Como pude ser tão estúpido. Como a pude deixar sozinha com os meus pais, a avó, a tia dos Açores...
Voei pela auto-estrada. Tão rápido que nenhum carro da brigada teria audácia para me perseguir. E finalmente, no romper da madrugada, cheguei a Lisboa. Desesperadamente cheguei a Lisboa. Deixei o carro à balda e, intranquilo, sem paciência para elevadores, esgueirei-me pelas escadas.

- Joana, Joana – rodei o trinco a gritar – Joana!

Um silêncio povoava o vazio. E eu perdi-me, passando a pente-fino todas as divisões que conhecia de cor. Nada. Nada de nada. Zero.
Até que, ofegante, reparei que, em cima da cama desfeita, repousava um papelinho sem importância, com um recado escrito. Dizia:

- Fui com a Amanda, ver o concerto dos Oasis, ao Sudoeste.

Oh Mornig Glory, that’s another story.





sábado, 21 de dezembro de 2013

Carta de uma mãe preocupada




Sampler de Fuck Christmas, I got the blues (Legendary Tigerman)



A Lapónia não é sítio onde se nasça. A neve cega os olhos de cores escuras e o frio embranquece-se de tal forma que o sol dá em louco: ora teima em não se pôr ora hiberna como os ursos que por ali moram. Os outros habitantes da Lapónia, aqueles que não são ursos, habituaram-se a conviver em silêncio com as estranhezas do fim do mundo. Quem não saiba da neve, pensa que isto fica do outro lado da estratosfera, num planeta omisso dos manuais, ou nos anéis de Saturno. Pois aqui, onde a Terra deixa de o ser, a população, de gente escassa, sabe de coisas que outras gentes não sabem. E já se acostumou a guardar segredos. Como o daquele parto, na noite clara, a que assistiram três renas, um trenó e um anão zangado a servir de médico. Eu fui mãe.
Como o frio por ali não se agacha, já há muito aceitamos que, por mutação genética, bebés nasçam de casaco de lã e botas calçadas. Quem sofre, claro está, é a mulher que tem de deitar aquilo tudo cá para fora, como se um corpo, por si só, não pesasse o suficiente ao sair. Por isso, nem comentários se ouviram, quando o anão habilidoso, puxou pelo gorro a criatura abafada que fugia das minhas pernas. Mais esquisita parecia aquela barba ondulante, longa e branca, num ser ainda mal nascido. Pensei que tinha dado à luz um Iuti, um abominável homem das neves. Mas percebei depois , pela fatiota vermelha e a cara simpática, que de algo mais anormal se tratava.
Não dei logo nome à aberração. Deixei-a por ali nascida e vermelha, a ver como se movia. E até pensei em escondê-la. Mas passados os meses da escuridão, não tive como afastá-la do mundo e inscrevi-a aqui mesmo na escola da Lapónia. Chamei-lhe Nicolau, que era a marca do gorro. E assumi a minha maternidade colorida.
Nicolau não teve uma infância fácil. Os meninos da Lapónia gozavam com a sua ‘vermelhesa’, e puxavam-lhe as barbas, rindo-se com maldade, como se quisessem com elas cobrir o resto do corpo de branco. E ele deprimia-se a comer rabanadas de vento e sonhos de um mundo de todas as cores. A sua vontade era ‘embarrigar’ os outros contra a parede e assim ganhar respeito pela força. Contudo, algo na sua natureza barbuda o impedia de vis atos.
Mais feliz se sentia no seu mundo secreto, onde os animais falavam e dezenas de seres minúsculos lhe enchiam a barriga de fritos, enquanto ele, por malandrice, se esgueirava pela chaminés dos vizinhos. Assim como o sol, acomodava-se à claridade da casa enquanto Inverno se exibia escuro. Demorei dois anos a tratá-lo por filho, mas a partir daí amei-o como se de um filho se tratasse.
Por isso chamo-o agora assim. O meu filho, Nicolau, sempre que voltava à escola, depois do hiberno, entristecia-se e tingia-se de vermelho. E quanto mais vermelho ficava, mais os outros engalfinhavam com a sua diferença. Houve um dia que, para cúmulo, o pintaram de branco, tal a intolerância à cor. De um branco hediondo e pardacento.
Se morasse lá para as Américas, Nicolau teria incendiado a escola, como nas histórias que se contam na televisão. Mas cá na Lapónia, no admirável mundo tranquilo, quanto mais vermelho mais bonzinho se fica. Nicolau vingou-se ao contrário. Foi comprar sonhos aos duendes, enfiou-os para dentro de um saco e ofereceu-os ao desbarato aos inimigos da escola. As crianças choraram de emoção ao verem os seus sonhos desembrulhados e prometeram portar-se bem para o resto do ano. Nunca mais o importunaram e passaram a tratá-lo como um Pai. E só não arranjou namorada porque temia ter um filho barbudo e vermelho como ele.
Mas isto de dar prendas pode tornar-se um pouco viciante. E o meu filho, pobre coitado, entusiasmou-se com a dádiva e quis distribuir presentes por todas as crianças e a alguns adultos. Partiu de sacola às costas, com as renas a puxar um carro, e fez-se ao mundo. Passou por universos de terra amarela, prados verdes, e luzes intermitentes. Percebeu que a vida não é feita apenas de flocos de neve.
E se anda pelo o mundo é porque há anos que não regressa à Lapónia. Talvez nem saiba que a sua mãe está velha e sente muito a sua falta. É esse o motivo pelo qual vos escrevo esta carta. Se por acaso o virem, de saco às costas, a arrepiar caminho pelas chaminés, por favor, digam-lhe que me telefone ou que me faça uma vista. Nem que seja pelo Natal.