quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Nódoas negras (o que faz um sampler dos Oasis na música dos Blur?)





A vida é feita de pequenos dilemas, mas aquele era particularmente delicado. Já estava tudo combinado com o Nico, os bilhetes reservados, o carro cheio de gasolina...
A Joana é a mulher com quem eu escolhi viver... e os Blur... Os Blur são, no mínimo, a melhor banda da atualidade. Melhores que... Nem vale a pena continuar. Essa coisa de comparar os Blur com os Oasis é um truque comercial desesperado, tendo em vista a promoção dos segundos. Não há aqui Beatles e Rolling Stones.. É como confundir o artista plástico com o calceteiro. Os Blur são grandes. E os Oasis são uns tipos que andam para aí. Não há rivais à altura. Inclusive, o começo dos Blur é superior ao dos Beatles. Exagero? Então comparem Leisure com Please, Please, Please me.
Quando soube que os Blur iam atuar a Madrid, tratei de garantir que eu era um dos 3560 espectadores presentes na sala. Desse por onde desse. Custasse o que custasse. Em escudos, euros ou pesetas. Telefonei ao Nico, o cúmplice do costume. Alinhou na viagem. Eu predispus-me a pagar a gasolina. Ele as portagens. Marcámos a hora... Só depois avisei a Joana.
A vida é feita de pequenos dilemas, mas aquele era particularmente delicado.
Deixei-a partir para o trabalho e fiquei ali sentado naquela indecisão. Com 365 dias no ano, porque raio é que ela tinha que nascer exactamente no mesmo dia do concerto dos Blur? É mau feitio. À noite haveria um jantar com os pais dela. E com os meus pais. E a avó. E a tia que veio dos Açores.
Os dois pratos na balança. O jantar de família e os Blur. Os Blur e o jantar de família. Em que ficamos?

- Estás pronto, Nico?

*

Já sabia que os espanhóis eram barulhentos. Mas nunca os imaginei tão malcomportados. Quando o espetáculo começa, continua a ouvir-se aquele burburinho entre o “vale vale” e o “hombre”. Ostia, tive que ligar o meu silenciómetro, abstrair-me dos comentários corrosivos e concentrar-me de corpo e alma nas canções. Brilhante Boys & Girls. Brilhante Country House. Brilhante There’s no other way – não há amor como o primeiro. Subitamente, de forma inexplicável, Damon Albarn, começou a entoar Birthday, um tema esquecido do primeiro álbum. Porque o fez? Ainda hoje não sei. Na altura soou-me como um sinal dos céus.
Cantou de forma soberba e sussurrante as palavras de azedo lilás.

It’s my birthday,
no one’s here today
I don’t like these days
they make me feel so small

Aquela música descobriu o canal que liga os meus ouvidos a compartimentos adormecidos do coração. E desentupiu-o. Senti o remorso, que se converteu em saudade, e culminou numa vontade irresistível de regressar. Nem quis ouvir Song 2, nem outros êxitos recentes. O Nico ficou para ali a saltar eufórico entre “vales” e “de putamadres” e enquanto eu deixava a sala, sem me preocupar com o seu regresso à pátria. Nunca me imaginei capaz de abandonar um concerto dos Blur a meio, mas foi o que fiz. Tudo por uma imensa vontade de beijar a Joana, de mergulhar no silêncio dos seus lábios, do seu meio-sorriso e ar zangado.

Joana banana vai para a cama de pijama.

Parti sem olhar para trás. Meti-me no carro e viajei para Lisboa. Prego a fundo. A ouvir repetidamente o último álbum dos Blur. Madrid é tão longe. Por auto-estradas que nos aproximem e fronteiras que se desfaçam haverá sempre 600 quilómetros a separar-nos. Corro ao sabor do tempo, inspirado em memórias de olhares.
Como pude ser tão estúpido. Como a pude deixar sozinha com os meus pais, a avó, a tia dos Açores...
Voei pela auto-estrada. Tão rápido que nenhum carro da brigada teria audácia para me perseguir. E finalmente, no romper da madrugada, cheguei a Lisboa. Desesperadamente cheguei a Lisboa. Deixei o carro à balda e, intranquilo, sem paciência para elevadores, esgueirei-me pelas escadas.

- Joana, Joana – rodei o trinco a gritar – Joana!

Um silêncio povoava o vazio. E eu perdi-me, passando a pente-fino todas as divisões que conhecia de cor. Nada. Nada de nada. Zero.
Até que, ofegante, reparei que, em cima da cama desfeita, repousava um papelinho sem importância, com um recado escrito. Dizia:

- Fui com a Amanda, ver o concerto dos Oasis, ao Sudoeste.

Oh Mornig Glory, that’s another story.





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